“Medidas socioeconômicas importantíssimas, elas foram adotadas (…) para sustentar o ‘fica em casa’ no pico da pandemia — ‘fica em casa, se puder’”. Foram estas as palavras usadas pela jornalista Renata Vasconcelos durante entrevista ao presidente Jair Bolsonaro no Jornal Nacional, na última segunda dia 22.
Não há registro em lugar nenhum de que a expressão “fica em casa, se puder” tenha jamais sido utilizada por ninguém.
A mesma Renata Vasconcelos, em vez de enfatizar um inexistente “se puder”, deu uma ênfase diferente no auge da pandemia: de que a ordem era “ficar em casa até que venha a orientação pra sair”.
Renata desmente Renata pic.twitter.com/Uqv9JNXM3E
— Bernardo P Küster LIVRE (@bernardokuster2) August 23, 2022
Um dos primeiros casos famosos foi um espancamento coletivo de policiais em uma mulher em Araraquara. Ninguém pensou em um “se puder” naquele momento.
Fique em casa, “SE PUDER…” 🤡
Esse vai especial pra Renata. pic.twitter.com/OdENYEX7IN
— Faka 🇧🇷🇧🇷🇮🇱🇺🇸🇱🇧 (@opropriofaka) August 23, 2022
A própria Rede Globo, dona do Jornal Nacional, foi taxativa no Fantástico: a ordem era “geral”, e não “se puder”.
O mal da mídia é achar que a internet esquece pic.twitter.com/9xC3ak4iJj
— Flavio Garage (@kenmiIes) August 23, 2022
Outro programa da mesma emissora em que Renata Vasconcelos trabalha, o Profissão Repórter, condenou à eternidade uma curiosa reportagem: os jornalistas acompanhavam a fiscalização da prefeitura, que exigia o fechamento de comércios e multava quem estivesse aberto.
Entre lágrimas desesperadas de comerciantes, os repórteres ainda culpavam os próprios comerciantes — que “não podiam” ficar em casa — mesmo enquanto filmavam geladeiras vazias e famílias sem ter o que comer.
Na chamada para o Profissão Repórter, o que líamos era: “Em Guarulhos, fiscais da prefeitura multam comerciantes que desrespeitam restrições”. Nada de um “fique em casa, se puder”. O Fantástico também cravou um desumano “Cenas de desrespeito às restrições de circulação se repetem em várias cidades do país”.
Já no G1, da mesma Globo, uma reportagem de agosto de 2020 avisava que o “Estado de SP registra 256 crimes por desrespeito ao isolamento e falta de máscara na pandemia; 13 vão responder a processo”. “Crime”. Nenhum “se puder” amenizador — ou, no caso, atenuante.
“O choro é livre”
Já a jornalista Maju Coutinho, também da Rede Globo, ao anunciar que os especialistas seriam “unânimes” (sic) em exigir o trancamento, soltou de maneira insensível o clichê “o choro é livre”. A própria apresentadora não estava trabalhando de home office no momento, como também não o podiam vendedores, faxineiros, zeladores, pedreiros e tantos outros.
As classes mais pobres, sem surpresa, foram as mais afetadas pela política do fechamento de comércios, trancamento de ruas e truculência policial nunca antes vista durante a pandemia. Alguns jornalistas de esquerda, que costumam criticar a violência policial, justificaram a crueldade com o mantra “a economia a gente vê depois”.
No Piauí, um comerciante sofreu um surto epiléptico enquanto era algemado. Ficou sem socorro. O governo era do petista Wellington Dias.
Pequeno comerciante é preso e algemado, pela PMPI, sofre surto epiléptico, vai ao solo, sem socorro algum. “Absurdo ocorreu no Piauí, que é governado por um ditador do PT, q, inclusive, é o responsável por ordenar essa perseguição ao povo trabalhador. pic.twitter.com/JmQ0YW6RfZ
— Alexandre Dumont (@AlexandreDumon) April 20, 2020
Na cidade de Rio das Ostras (RJ), um pipoqueiro, impedido de trabalhar, desesperou-se e tentou cometer suicídio em frente à prefeitura.
Pipoqueiro se desespera por não poder trabalhar e tenta cometer suicídio em frente à Prefeitura de Rio das Ostras. O Prefeito se elegeu com a bandeira do Presidente e se aliou ao PT. Quem defende lockdown não conhece a realidade do cidadão que não consegue levar comida pra casa. pic.twitter.com/DyBqwm6Oug
— Carlos Jordy Federal RJ 2211 (@carlosjordy) April 8, 2021
O comércio com menos recursos logísticos teve de agir como se fosse tráfico de drogas entre fins de 2020 e 2021. Muitos comerciantes tinham de manter portas fechadas e atender clientes às escondidelas. Isto enquanto o próprio tráfico de drogas era facilitado, com proibições de operações policiais em morros com traficantes devido à própria pandemia.
DESESPERO DO TRABALHADOR – Lojista anuncia a venda de roupas escondido no chão de sua loja, com porta quase fechada para não ser PRESO. pic.twitter.com/ArKCaFAv7k
— Fernanda Salles – Dep. Estadual 10700 MG (@reportersalles) March 22, 2021
Os trabalhadores sofriam violência policial por trabalhar, justamente porque “não podiam” ficar em casa. Cenas de abuso policial, inclusive contra mulheres, principalmente de baixa renda, não receberam um muxoxo de crítica de feministas ou de caudatários de partidos com “trabalhadores” no nome.
ABSURDO! Os pequenos comerciantes estão sendo reprimidos com violência nas periferias do DF. Queria vê essa mesma autoridade com os donos de boates e bares caros do Plano Piloto, que infringem reiteradamente as normas sanitárias. As imagens foram feitas no Jardim Botânico. pic.twitter.com/486jtf7J5r
— Douglas Protázio (@douglasprotazio) June 4, 2021
“Poder” ficar em casa, obviamente, foi um luxo da elite — principalmente de grandes conglomerados monopolistas que viraram sinônimo do próprio comércio. Já os pequenos varejistas, apenas para ficar em um exemplo, foram tratados como criminosos.
EDUARDO CORNÉLIO, LOJISTA PRESO POR ESTAR TRABALHANDO EM RIBEIRÃO PRETO SP. SOLTO pic.twitter.com/YlJCyoRx9t
— Olavo Cabrera (@CabreraOlavo) March 17, 2021
Ficou também famoso um espancamento numa praia (deserta na hora) no Rio de Janeiro, enquanto ônibus e metrôs permaneciam lotados. O maior risco para a banhista, disparado, foi a aproximação dos policiais.
“Fique em casa SE PUDER”
🤡 pic.twitter.com/9Qhydkcvgf— Paula Marisa (@profpaulamarisa) August 23, 2022
Mas o caso mais grave de autoritarismo contra inocentes na história brasileira se deu em São Paulo: a prefeitura soldou comércios para impedir sua abertura. Apesar de o site da prefeitura ter apagado o post gabando-se do feito, ele ainda pode ser visto em arquivo na internet.
Isto para não falar dos pequenos trabalhadores ambulantes: sem clientela e, não raro, tendo seu pouco sustento tomado pelo Estado em nome da ciência, pois “a economia a gente vê depois”. Eles “não podiam” ficar em casa.
RENATA VASCONCELLOS E SEU FIQUE EM CASA SE PUDER EM UMA IMAGEM pic.twitter.com/DkRXW6ATVv
— FamíliaDireitaBrasil (@BrazilFight) August 23, 2022
O lockdown foi anticientífico e negacionista
Na verdade, a suposta “unanimidade” aventada por Maju Coutinho, que também em si, é uma fake news. A apresentadora não pesquisou o tema para encontrar “unanimidade”, como o comprova um estudo da Universidade Oxford ainda de abril de 2020, que mostrava que as tais “ondas” tão temidas da pandemia não funcionavam como dizia a mídia — como a Rede Globo de Maju Coutinho.
Posteriormente, a desconfiança com a efetividade do trancamento, fossem lockdown, isolamento social ou outros modelos intermediários ou híbridos de quarentena, foi confirmada por um artigo pouco comentado na mídia: um estudo da Universidade Johns Hopkins provando pouco ou nenhum impacto das medidas restritivas na contenção do vírus.
A única resposta da velha mídia foi afirmar que o estudo não era da Johns Hopkins, e sim a meta-análise (que envolveu mais de mil estudos). O caso já havia sido explicado pelo jornalista científico Alex Berenson em um livro de junho de 2020: um lockdown só poderia ser efetivo antes de o vírus se espalhar em um país. Quando Donald Trump sugeriu restringir voos da China, foi chamado de “xenófobo”.
Adicionalmente, tivemos os óbvios problemas do lockdown para a economia, já antevistos no começo de 2020 e ignorados à época.
O “fica em casa”, que nunca teve o complemento falso “se puder” também pode ter causado ainda mais mortes do que o próprio vírus — ainda que estas não apareçam em estatísticas comentadas na velha mídia. O próprio Departamento de Saúde britânico começou a investigar mortes por doenças cardíacas, além de câncer e diabetes, que podem ter se agravado com o lockdown.
“O choro é livre”, como disse uma jornalista da Rede Globo, mas era só “se puder” — nós, os sobreviventes, fomos avisados tardiamente.