Sob a ditadura de Nicolás Maduro, a cesta básica na Venezuela custa em torno de US$ 460 (R$ 2,5 mil), equivalente a quase 20 salários mínimos da Venezuela. A informação foi divulgada pelo Centro de Documentação e Análise Social da Federação Venezuelana de Professores (Cendas-FVM), no fim do mês passado.
“Virou um artigo de luxo”, observou María Teresa Belandria, embaixadora do país no Brasil. Advogada e especialista em Direito econômico internacional, a diplomata de 58 anos é também professora universitária e foi escolhida pelo presidente interino da Venezuela, Juan Guaidó, para representá-lo no Brasil.
Em 2019, María Teresa recebeu as credenciais do presidente Jair Bolsonaro que permitiram-lhe começar os trabalhos aqui. Em entrevista a Oeste, a embaixadora falou sobre o que está acontecendo na Venezuela, denunciou violações de direitos humanos e disse que o país voltará a ser uma democracia.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Desde que a senhora foi reconhecida no Brasil, como tem sido a sua rotina?
O presidente Jair Bolsonaro oficializou-me embaixadora em 2019. A partir de aí, tenho trabalhado em várias frentes com as autoridades brasileiras para ajudar o meu povo, sobretudo na Operação Acolhida, que já resgatou mais de 200 mil venezuelanos. São imigrantes pobres que chegam com apenas uma mochila nas costas para tentar uma nova vida longe do autoritarismo da ditadura de Nicolás Maduro. Atualmente, não ocupamos o prédio da embaixada, no Lago Sul de Brasília, porque o edifício está nas mãos dos funcionários de Maduro [em 2020, o Supremo Tribunal Federal proibiu a expulsão de 34 diplomatas do ditador].
De que forma o chavismo se perpetuou no poder?
Por meio de um processo lento e complexo. Depois de ganhar as eleições, o então presidente do país, Hugo Chávez (1999-2013), modificou o coração da democracia: a Carta Magna. Ao mudá-la, conseguiu controlar os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, acrescentando ainda o Cidadão e Eleitoral. Na sequência, partiu para cima das Forças Armadas e promoveu uma série de oficiais para garantir a lealdade deles. Em paralelo, criou as milícias com a finalidade de servir-lhe de guarda pessoal. No campo econômico, Chávez asfixiou a iniciativa privada, ao estatizar uma série de empresas, além de usar o dinheiro do petróleo para abastecer o projeto do “socialismo do século XXI”. Os recursos financeiros do povo venezuelano foram usados para assegurar o apoio de vários parceiros de Chávez no continente: Lula (Brasil), Mujica (Uruguai), Cristina Kirchner (Argentina), Rafael Correa (Equador) e outros governos de esquerda. Hoje, 24 anos depois, a Venezuela está arruinada.
A única forma de mudar o que está acontecendo na Venezuela é com uma eleição presidencial
Além da promoção a cargos de alta patente, o que mais foi feito para conseguir o apoio dos militares?
Chávez cultuava Fidel Castro. O ditador cubano ensinou o “devoto” a criar o serviço de inteligência perfeito para saber o que estava ocorrendo dentro das Forças Armadas. Colocaram espiões cubanos em meio aos militares. Assim, conseguiram compreender o seu funcionando e os anseios de seus membros.
O que sustenta a ditadura de Nicolás Maduro, sucessor de Chávez?
As bases do governo Maduro estão no apoio internacional de países, como Rússia, China, Cuba e Turquia, nas Forças Armadas e no dinheiro do narcotráfico, fortalecido durante os governos de esquerda na América Latina. Hoje, a Venezuela serve como uma rota para o transporte de entorpecentes que saem da Colômbia. Há denúncias de que, na Venezuela, também ocorrem lavagem de dinheiro e tráfico de órgãos. O dinheiro sujo da corrupção está em bancos chineses, russos e turcos. Além disso, o controle policial e militar interno é fortíssimo. Se você sair para protestar nas ruas, vai ser detido. Hoje, temos pouco mais de 234 presos políticos. Trata-se de uma repressão horrível.
Em abril de 2019, o presidente interino Juan Guaidó convocou a população para ir às ruas e pressionar a ditadura. No entanto, as coisas continuam no mesmo lugar. Quais são as próximas estratégias?
A única forma de mudar o que está acontecendo na Venezuela é com uma eleição presidencial. Não tem outro jeito. A ditadura parou as negociações porque defende a soltura de Alex Saab, um narcotraficante e lavador de dinheiro. Maduro o considera um diplomata. Saab foi extraditado em outubro de 2021, de Cabo Verde para os Estados Unidos. Os norte-americanos não querem liberá-lo porque Saab estava colaborando com a DEA [Administração de Fiscalização de Drogas, em português] desde 2018. Com isso, Maduro suspendeu as negociações e condicionou a volta ao diálogo à soltura de Saab.
Há um discurso segundo o qual uma intervenção militar externa na Venezuela poderia resolver as coisas. O que a senhora pensa sobre isso?
Não vai acontecer. Nunca foi uma possibilidade. Trata-se de uma especulação da imprensa. Uma ideia doida. Na América Latina, isso não é possível. A única possibilidade é uma negociação e uma data para a eleição presidencial.
O que o presidente Guaidó consegue fazer pelo povo venezuelano?
Controlar as relações exteriores com países democráticos, o ouro da Venezuela na Inglaterra, arquivos petrolíferos no exterior e embaixadas onde somos reconhecidos como governo. Dessa forma, diplomatas podem ser pagos, informações relacionadas ao petróleo ficam sob sigilo e a ditadura não pode roubar o dinheiro depositado em bancos nos EUA e na União Europeia.
O ex-presidente dos EUA Donald Trump era simpático a Guaidó. Como está o relacionamento com o presidente Joe Biden?
A política não mudou. O reconhecimento ao presidente Juan Guaidó continua. Não é uma relação próxima, como foi com Trump, porque o estilo dos presidentes é diferente, contudo, Biden reconhece nosso governo, além de outros 49 países. Nós temos, por exemplo, sanções econômicas que permanecem, o apoio para ações humanitárias como a vacinação, entre outros.
A saída do então ministro Ernesto Araújo e a ascensão do chanceler Carlos França impactou de alguma forma o diálogo entre o Itamaraty e Guaidó?
De jeito nenhum. No mês seguinte à mudança, recebi um convite do chanceler França para um almoço. Continuo recebendo o apoio do governo Bolsonaro.
O que mudou na Venezuela desde a invasão da Ucrânia pela Rússia?
Para os venezuelanos, nada. Já Maduro conseguiu a possibilidade de vender petróleo aos países que não têm esse produto.
Como que a senhora se sente ao ver políticos brasileiros defendendo a ditadura de Maduro?
Não posso falar sobre a política interna brasileira porque a Convenção de Viena proíbe, mas posso afirmar com propriedade que a Venezuela não vive uma democracia, e sim um Estado que viola os direitos humanos. Um professor universitário, com doutorado, recebe US$ 7 por mês. Com esse valor, ele não compra uma cesta básica na Venezuela, que se tornou artigo de luxo para a população. Temos 232 presos políticos, cuja rotina é de tortura e estupro. Crianças morrem de fome todos os dias. Os hospitais não têm medicamentos suficientes. Diariamente, uma multidão de pessoas deixa o país. Até governantes como o presidente do Chile, Gabriel Boric, já declarou que a Venezuela não é uma democracia, além do presidente do Peru, Pedro Castillo. Estar do lado de Maduro é apoiar um regime que mata pessoas.
A senhora acredita que o regime do Maduro vai cair um dia?
Com certeza isso vai acontecer. Os processos de independência têm uma dinâmica própria. Você sabe o dia que começam, mas não quando terminam. Uma coisa tenho certeza: a Venezuela vai voltar a ser livre.